NATAL PRESS

Uma mulher como esta deve ter nome de flor, pensei, quando a vi pela primeira vez. Era o lançamento do livro de poesias de um amigo, e, entre o vinho e conversas tediosas, apercebi-me da mulher à minha frente.


Era linda, de pele leitosa e olhos indecisos entre o negro e o castanho. Cabelos negros presos em coque e um sorriso luminoso. Decidi que precisava conhecê-la e o destino conspirou a meu favor. Uma amiga em comum nos apresentou. Chamava-se Violeta. Contei a ela minha impressão sobre seu nome; ela riu e disse que queria ouvir mais sobre minhas impressões.

Jantamos no dia seguinte, e o vinho branco serviu como senha para que descobríssemos gostos em comum; livros, filmes, músicas, hábitos... Eu, artista plástico de relativo destaque ela, uma atriz e encenadora em ascensão, como vim a descobrir. Os muitos gostos em comum se tornaram cumplicidade e não tardou a se tornar amor.

Um amor que desaguou em casamento. Nem mesmo os invejosos conseguiram tirar um pedregulho do castelo onde erguemos nossa história de amor. O êxito emocional fez-se seguir pelo profissional; tive telas vendidas para a Holanda e a Itália; Violeta ganhou ovações e prêmios por uma encenação de Medeia... Consideramo-nos preparados para conquistar o mundo. Violeta a flor, de nome e trato; eu, a pedra, pela personalidade e firmeza em ações e opiniões.

Não tardaram os conflitos. Ciúmes, quase sempre sem razões e intempestivos; intolerância, muitas vezes próxima da grosseria; ambos guardando rancores como quem guarda bijuterias em uma caixa. Minhas telas sofreram o efeito da crise; os temas se tornaram mais lúgubres. Violeta, por sua vez, desaguava nas personagens a raiva que carcomia seu coração. Atrasei a entrega de telas e diminui o ritmo de trabalho. Ela chegava atrasada a ensaios e se tornava mais ríspida com os colegas de palco. Afinal, a maior parte do tempo era dedicada ao jogo das ofensas, da espera pela ironia para responder a uma ironia antes colocada à mesa. E o castelo ruiu, como seria de se esperar.

Encontramo-nos três vezes Violeta e eu, após a separação. Ensaiamos retomar o casamento, trocamos mais frases ferinas, choramos um pouco, mas, por fim, decidimos manter-nos longe um do outro. O tempo curaria as dores, como costumam dizer e era, possivelmente, verdade.

Porém, a separação parece ter atraído a sorte contra nós. Meses depois, dirigindo com sono, Violeta bateu o carro contra um caminhão na BR. Ficou meia hora sangrando presa às ferragens. Perdeu a perna direita. Estava fazendo fisioterapia e tentando se adaptar a uma prótese.

Quanto a mim? Cá estou em um restaurante, lembrando de tudo que relatei e esperando Violeta chegar. Ouvi sua voz atrás de mim. Senti sua mão em meu ombro . Com um barulho estranho – a prótese, claro – ela sentou-se à minha frente. Talvez estivesse sorrindo. Talvez tivesse pintado novamente o cabelo. Esqueci de relatar somente este detalhe, sobre mim; uma semana depois do acidente de Violeta, senti uma dor nos olhos, que tentei aplacar com colírios. Como a dor não passava e a vista começou a ficar enevoada, recorri a um oftalmologista. Descobri que havia contraído uma bactéria rara, similar ao glaucoma, e que estava ficando cego. Fui cirurgiado, na esperança de manter a visão, mas foi inútil. Como Borges, fiquei cego.

Eu e Violeta estamos aqui, rindo de nosso quinhão de sofrimento nesta vida. Um cego e uma aleijada, ela riu. Agora, não era o mundo que tínhamos para conquistar, mas sim, a vida cotidiana, como fazer um café ou fritar um ovo.

Rimos disso e pedi que ela colocasse mais vinho em minha taça...



Twitter