Todos nós, com certeza na escola, lemos a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei. Acabo de descobri-la no IBooks, e baixei para o meu computador, para relê-la. Fiquei surpreso como mostra muito do Brasil de hoje.  Quando a li da primeira vez, na escola e adolescente, não me chamou muito a atenção. O que lia entrava por um olho e saía pelo outro. Agora, com um pouquinho mais de idade e experiência, me surpreendi com a semelhança que em muitos de seus comentários retratam o país em que hoje vivemos. Considerem, ao lerem estes escritos, a diferença de quinhentos anos entre a carta e os tempos atuais. Portanto, sobrepesem minhas palavras, que não podem, mais das vezes, ser tomadas ao “pé da letra”. Mas, vejam só, há muito de atual.
      

A carta é bajuladora, incompetente, imprecisa, exagerada e preconceituosa. Começa com um elogio ao rei, exagerado. Pede desculpas em fazer a carta, pedindo para que fosse tomada “sua ignorância por boa vontade”. E que não ia dizer nada mais do que via – “não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu”. Isso lembra os nossos políticos, com suas longas estórias e explicações.
      

Já no quarto parágrafo começa a imprecisão. Diz que viram as Canárias entre as “oito e nove horas”, e andaram todo o dia à vista delas, “obra de três a quatro léguas”. No domingo, “22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos”, viram Cabo Verde.  Quando distavam “obra de 660 ou 670 léguas da dita Ilha”, avistaram sinais de terra. “No mesmo dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra”. Um monte, que recebeu o nome de Pascoal dado pelo Comandante, que também batizou a terra como o nome de Terra de Vera Cruz. E aí começou nossa odisseia. Do Brasil.

No dia seguinte, foram em direção à terra, medindo a profundidade, e ancoraram “às dez horas, pouco mais ou menos”. Avistaram homens que andavam pela praia, “obra de sete ou oito”. O Capitão mandou um batel à terra, e quando lá chegaram, havia já “dezoito ou vinte homens”. E os descreve: “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. Eram os preconceitos da época, que se entendem. Mas, disfarçados, ainda existem hoje.

Descreve os numerosos contatos que tiveram com os indígenas, sempre usando números imprecisos na quantidade de pessoas: “cerca de duzentos; em redor de sessenta ou setenta”. Nunca um número preciso. Isso lembrou-me nossas estatísticas atuais: inflação de 9 a 11%, dólar em entre 3,90 e 4,20, PIB crescendo entre 3 e 4%. Essa “clareza e precisão” nós herdamos. Nunca um número preciso. É verdade que precisão em números que tais é difícil, mas a imprecisão, às vezes, é grande demais.

E descreve a missa celebrada pelo frei Henrique. Diz que entre “cinquenta ou sessenta ” a assistiram, e tudo que fazíamos, repetiam. Se ajoelhavam, faziam sinal da cruz, e no Evangelho, ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, fizeram o mesmo. Concluiu que eram “novas almas para a Igreja”.

E, já no final da carta, escreveu a parte que ficou mais conhecida de todos nós: “águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. A seca está aí.

E termina pedindo ao rei, “e pois, Senhor, tanto neste cargo que levo como em qualquer outra coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge Osório meu genro – o que d’Ela receberei com muita mercê”. E termina “Beijo nas mãos de Vossa Alteza”. Preparava sua “caminha”.

Essa carta, pelo menos para mim, lembra o Brasil de hoje, pela imprecisão, pela subserviência, pelos elogios ao rei, e pelo pedido final, que retratam nossos costumes.