Somos - sem exceção – humildes atores ensaiando uma peça cujo final nos é totalmente desconhecidos. Ainda bem. Estou de volta depois da minha 21ª maratona de Nova Iorque. Mesmo sem saber o que nos espera prefiro referir-me a essa prova como sendo a mais recente. Falar em última seria carregar nas tintas do pessimismo, mesmo porque o final da peça à qual me referi acima não me foi revelado.

A corrida em si foi, como sempre, aquele evento maravilhoso. Mesmo sendo minha 61ª maratona – considerando meu currículo inteiro - a emoção se fez presente. Como não pretendo falar na corrida, direi que meu desempenho não foi dos melhores e poderei alinhar uma série de “circunstâncias extenuantes” para justificar o resultado: um joelho avariado (apesar de ter sido operado por um dos papas do joelho), um estiramento na coxa da outra perna, o que me fez mancar das duas pernas, e uma gripe com a qual fui contemplado na antevéspera da prova, com direito a presença de médico etc. e tal.
Enfim.

Nada como viajar, rever lugares conhecidos e arriscar incursões em novos espaços. Mas para tanto é preciso chegar lá. E para chegar precisa ensaiar alguns passos do samba do crioulo doido – se é que a tribo do politicamente correto me permite assim dizer. Para acalmar censores implacáveis retiro o crioulo doido e o substituo por afrodescendente com problemas neurológicos. Pronto.

Confesso que devido às vendas espetaculares dos meus livros, viajei em classe executiva, affaires, business class, ou dito de outra maneira, em classe antieconômica - mesmo com o risco de levar a pecha de fomentador da luta de classes, conceito grouchomarxista que não me seduz.

Pois bem. Com o crescente rigor, presente em todos os aeroportos, para embarcar é preciso passar por um controle severo. No moderníssimo aeroporto de Guarulhos, apinhado de gente, mesmo sem estar em plena Copa do Mundo – já sei, estamos nos preparando e tudo corre de acordo com o cronograma – foi preciso enfrentar uma fila para o controle de passaportes e passar pela intransigente inspeção de bagagens de mão. Macaco velho – ou seria mais adequado dizer primata provecto?- não estava carregando nenhum objeto que pudesse ser usado para seqüestrar a aeronave. Nada de cortador de unhas, frascos contendo mais de 100ml de qualquer substância líquida, enfim, nada...

De forma algo paradoxal, descobri, pouco depois, que os talheres usados para as refeições a bordo eram de metal. Nada de passar um temível cortador de unhas, em compensação, facas de corte afiado, com as quais poderia... Vá entender!

Conforme prometi, nada direi a respeito daquelas intermináveis 26 milhas e algum quebrados, salvo a inevitável e obrigatória menção ao ambiente festivo que envolve a Big Apple durante o grande dia.
A volta foi ainda mais engraçada, já que as medidas de segurança no JFK são ainda mais drásticas – claro que depois os talheres são os mesmos.
Por um motivo que não conseguiria explicar resolvi embarcar usando meu monitor de freqüência cardíaca, cuja marca não declinarei, uma vez que a Polar não remuneraria esse tipo de merchandizing. Os leitores do meu imortal Um triângulo de bermudas, bem como todo atleta de fim de semana, sabem que se trata de um relógio incrementado e uma faixa colocada sobre o peito que permite monitorar os batimentos do coração.
Tive de, a semelhança do então embaixador Celso Lafer, tirar os sapatos e o cinto e passar por uma engenhoca que ‘scaneou’ meu corpo cansado, bem como as vestes autorizadas. Retirar e recolocar os sapatos são atos que requerem um certo equilíbrio ou na falta deste uma cadeira. Maratonista dispensa cadeira. Dediquei um pensamento enternecido ao NOSSOEXPRESIDENTE ( se o Canard Enchainé continua a se referir a De Gaulle como Mongénéral, por que não Nossoex? Não me canso de repetir) que desde sempre se insurgiu contra esse procedimento, proferindo a inesquecível frase: “Ministro meu não tira os sapatos”. Não sendo ministro, cumpri docilmente a exigência. Um alarme soou.
Eis que um empregado da TSA – Transportation Security Administration – aproximou-se de mim, e polidamente pediu para me apalpar. Se o gesto poderia ser classificado de assedio ou não, fica a critério do leitor. Em seguida, decretou. “ O senhor está usando um dispositivo no peito”. Disse-o num português rudimentar – isso porque, para me dar ampla oportunidade de defesa, os inspetores haviam. Após analisar meu passaporte, escalado um funcionário capaz de se expressar no português tosco, ao qual já aludi - mas à la guerre, comme à la guerre. Pensei que ele se referia à medalha. “Não, é um dispositivo”. Retruquei tratar-se de um sensor, o que em nada o acalmou. Levantei a camisa, para mostrar do que se tratava, gesto pelo qual fui imediatamente repreendido pela ‘otoridade’. Percebi o quanto essa forma impensada de agir poderia ter ferido o pudor anglo-saxão, que tolera o Pato Donald sem calças, mas é avesso à visão ainda que parcial de um busto masculino, mas já era tarde. Dezenas de retinas já haviam sido ofendidas. Mesmo assim, o fiador da segurança aeroportuária parecia alimentar dúvidas. Provavelmente passou-lhe pela cabeça que estaria eu interessado nas 72 virgens prometidas aos mártires que andam se explodindo, e insistiu num tom pouco amistoso que não admitia alternativa a não ser uma explicação abrangente: “para que serve isso?“. Fato sabido: a propensão a criar “enrosco” é inversamente proporcional ao grau hierárquico de qualquer funcionário.
Foi quando me lembrei de um filme maravilhoso: Amici miei, no qual por diversas vezes o inesquecível Ugo Tognazzi, quando confrontado com um interlocutor incômodo, saia-se com uma frase delirante. Algo assim: “Supercazzola prematurata a la seconda com scapelamento a destra”, tudo dito com uma velocidade de fazer inveja a um tarimbado locutor esportivo.
Imediatamente recitei o mais rápido que pude: “Sofro de variações da freqüência cardíaca que eventualmente pode alcançar níveis considerados perigosos e ao detectar tal fato tomo de imediato um betabloqueador”.
Funcionou. Fui liberado e tive, finalmente, direito aos talheres de metal que em nada comprometem a segurança das aeronaves, diferentemente dos perigosíssimos cortadores da lâmina dura, formada de queratina, que recobre a última falange dos dedos das mãos e dos pés – segundo impecável definição do Houaiss.

Crônica do livro ´´A luta continua``, Ed. Letraviva

Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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