Papai Noel

– Você?

– Você!

Ficou tão surpreso quanto uma paralela ao encontrar uma outra e não era para menos. Lá estava o Alberto; divisando o Marcelo. Apesar da passagem dos anos, quase nada mudara.

Quase.

Alberto, prefeito do próspero município de Aldeia da Praia, mal podia acre¬ditar. Lá estava o Marcelo, o melhor centroavante da história do colégio Padre Anchieta, de chute certeiro e drible desconcertante, além de ter sido o crânio da turma. Lá estava o amigão Marcelo, um pouco mais gordo, com o sorriso a iluminar o rosto de um sósia perfeito de um Marlon Brando um pouco mais magro.

Após estudar medicina na capital, Alberto voltara para a sua cidade e, pas¬sados alguns anos, descobriu ser a política a sua verdadeira paixão. Apesar da profusão de legendas partidárias, em Aldeia havia, de fato, apenas dois partidos: o “nós” e o “eles”. Filiou-se ao “nós” e, graças ao seu discurso vi¬brante, rapidamente, conseguiu ser eleito vereador. Daí a ser prefeito, foi apenas uma questão de tempo. Uma administração competente o levara a um segundo mandato, cujo início estava sendo festejado naquele exato momento.

O jardim do casarão – sede da prefeitura – estava apinhado de gente. Tapi¬nhas nas costas, abraços efusivos e risadas abafadas pelo som de um con¬junto de músicos amadores, senhor inconteste dos ouvidos dos vitoriosos.

Um toldo cobria um pequeno estrado em cima do qual tronava uma espécie de púlpito com um microfone pronto para o inevitável discurso.

Legal ter encontrado o Marcelo.

– Fale-me um pouco de você, caramba! Que surpresa! Nem acredito. Por onde andou esse tempo todo?

– Fiz GeVê, e fui controller em algumas empresas grandes. Depois... hesitou um pouco... viajei para... o exterior... e cá estou de volta.

– Bom filho a casa torna. Que mais? Rápido pô, tenho que dar atenção a toda essa gente e ainda tenho que fazer discurso. Casou?

– Casei e... separei faz... uns anos.

– Precisamos conversar. Pretende ficar por aqui?

– Vou ficar, sim. A casa dos meus pais me coube na partilha. Meu irmão fi¬cou com a fazenda. Para falar a verdade, foi bom ter saído daqui e melhor ainda ter voltado.

– Vai gostar, tenho certeza. Bem, vou fazer a média com os meus eleitores. Putz, fiquei contente, mesmo. Só me fale uma coisa: continua aquele con¬quistador irresistível? Aqui não tem disso, viu?

– Que nada, sou um pacato senhor.

– Sei, sei. O pacato senhor está intimado a comparecer amanhã ao gabi-nete do Prefeito. Venha por volta das 5 da tarde. Tá?

E assim foi.

À conversa do dia seguinte seguiram-se muitas outras. Em pouco tempo, Marcelo voltou a conquistar a cidade. Conquistas diversas.

Não foi surpresa para ninguém a nomeação para o pomposo cargo de Se¬cretário de Finanças. Na Câmara de Vereadores até os “eles” não se opuse-ram. Afinal, Marcelo abrira mão de toda e qualquer remuneração, ao menos por um período de 6 meses. Depois, poderiam voltar a discutir o assunto.

Começou a era do turbilhão de idéias.

Para reforçar as finanças municipais, Marcelo sugeriu que se atualizasse o cadastro dos logradouros. Uma empresa especializada colocou ordem num banco de dados desatualizado, permitindo uma cobrança de um IPTU compa¬tível com o padrão das edificações.

Sem praticar nenhum abuso, a receita para o próximo ano iria mais que dobrar, permitindo ir além das promessas de campanha do Alberto.

– Alberto, precisamos dar uma modernizada nisso.

– O que tem em mente? Concordo que tem um cheiro de naftalina. Vale a pena melhorar o visual de tudo isso. A Prefeitura do século 21.

– Mas que visual que nada. Estou falando em equipamento não em mobi¬liário. Só porque apareceu uma grana vamos torrar?

– Sim, senhor secretário. Desculpe, senhor secretário.

– Estou falando sério.

– E eu então.

– Vamos ampliar o velho Anchieta, vai dar para aumentar os salários dos professores. O hospital poderá...

– Ó, você prepara o raio do orçamento. Ah, vamos parar com essa baba-quice de você trabalhar de graça. No fim vão acabar achando que...

– Ninguém vai achar, porque não tem o que achar...

Não era bem assim. “eles” bem que tentavam, só que para cada centavo gasto, o inatacável Marcelo tinha uma prestação de contas à prova de bala. Sempre alegre e sorridente, alem de comprovadamente competente, ele se tornara um unanimidade. O prefeito estava fazendo seu sucessor, para a total frustração da oposição encurralada. Diga-se, de passagem, que o máximo que “eles” haviam conseguido, foi tentar uma aproximação tentando aliciar o cra¬que. Por sua vez, o craque não parecia ter o menor interesse em mudar de time. De vez em quando, ele se refugiava na sua sala. A secretária, imposição do Alberto, (pára de querer fazer tudo sozinho!!!) levava-lhe, suspirando, um comprimido para dor de cabeça, às vezes até dois.

Qualquer assunto era uma oportunidade para o Marcelo impressionar os demais. Contudo, durante todos aqueles meses, jamais fizera alusão alguma ao seu passado.

O Natal estava chegando. Como de costume, a prefeitura iria organizar uma festa infantil. Só que desta vez, seria para “todas” as crianças do muni-cípio. Desnecessário dizer de quem fora a sugestão e de quem foi o anúncio. Tudo calculado. Com uma listagem enorme com classificação por idade e sexo, Marcelo conseguira negociar um pacote com uma fábrica de brinquedos. Trabalho de primeira. Não haveria a menor possibilidade de um marmanjinho de 12 anos ganhar uma boneca ou uma menininha de 2 anos ganhar um ca¬minhão de bombeiros. E não era só isso. Na entrada, todos receberiam um envelope no qual haveria um vale-brinde. Os mais sortudos receberiam um vale-cheque, possibilitando a compra de um brinquedo adicional. Para os de¬mais, o papelzinho marcaria “sorvete”.

Na véspera da festa, Marcelo ficou trancado no seu escritório, com mais uma das suas já famosas dores de cabeça e lá permaneceu enclausurado até altas horas com a impressora emitindo os vales-brinde.

No dia seguinte, a fanfarra do colégio estava dando as boas-vindas a todos, ao som do “gingobel”.

Discurso emocionado e emocionante do prefeito.

Mais um discurso comovente do diretor do colégio, elogiando a competente administração “sem a qual nada disto teria sido possível”.

Outro, finalmente, vindo da oposição, louvando a transparência da admi¬nistração, mas lembrando que o importante era o município e que, naquele momento, mais do que nunca, permaneceriam vigilantes para que tantas ou¬tras realizações não ficassem apenas nas promessas e sim... etc, etc, etc.

Teve início a distribuição de brinquedos. Pais emocionados apanhando as sacolas etiquetadas, e, numa urna aberta, o misterioso envelope, ouvindo atenta¬mente a recomendação “ só abram quando o Sr. Prefeito pedir”.

Finalmente o sinal.

Uma explosão indescritível de alegria, pessoas pulando, se abraçando, en¬tusiasmo infinitamente superior ao que se poderia imaginar.

A explicação foi trazida pelas centenas de pessoas brandindo cheques, cujo valor fez empalidecer o Sr. Prefeito.

Na mesma tarde, Marcelo voltava a ser internado!...

Crônica do livro “Mãos Outonais”, Ed. Totalidade

Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` ´Plataforma G` (Ed. Totalidade), ´Bucareste` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.