Para onde vai a trajetória política dos tiros que mataram Charb, Wolinski e Ahmed? Para onde vai a trajetória política dos tiros que mataram Charb, Wolinski e Ahmed?

Quando os terroristas atacaram a redação do jornal Charlie Hebdo na última quarta, atiraram pra matar. Mas não atiraram a esmo, fuzilando o ambiente sem ordem, com aquela selvageria dos amadores. Eles foram seletivos. Chamaram as pessoas pelo nome e acertaram alguns dos mais importantes chargistas franceses com tiros precisos, calculados.

Mas se a bala, esse artefato inexpugnável dos covardes, encontrou o alvo no corpo das vítimas de 07 de Janeiro, o tiro político dos terroristas, pelo menos por enquanto, ainda não completou sua trajetória.

Apesar dos danos claros à noção de liberdade de expressão, uma das poucas coisas realmente valiosas que o liberalismo burguês nos legou, não foi esse o alvo dos terroristas. O ataque ao Charlie Hebdo tem um objetivo mais específico: desconstruir o discurso de tolerância do liberalismo europeu.

Existe uma grande tentação hermenêutica que circunda esse atentado. A tentação de reerguer os mitos de origem que fundamentam as ideologias políticas do ocidente. Essa parece ser a grande tarefa a que a extrema direita europeia se impõe. Reproduzir na narrativa política contemporânea a ideia de um combate cultural que separa civilizações, retomando velhos tropos poéticos de Heródoto, Torquato Tasso ou da Canção de El Cid e seu mito da reconquista ibérica. Segundo essa noção há uma guerra cultural sendo travada. De um lado as forças do ocidente cristão liberal, de outro as forças da ameaça sarracena, que se levantam contra o continente Europeu para devastar a herança ocidental.

É justamente esse mito de origem, construído pela consolidação de um imaginário poético de combate da Europa contra o mundo oriental, que aparece como pano de fundo narrativo para a “solução final do problema judaico” empreendida pelos nazistas nos anos quarenta.

O mais curioso é ver como certos setores da esquerda, especialmente a latino americana, reforçam essa chave hermenêutica da extrema direita, acreditando, com uma ingenuidade desoladora, a estarem combatendo.

O ato radical de liberdade do artista é melhor que o ato radical do terror. O ato radical de liberdade do artista é melhor que o ato radical do terror.

Ao se relativizar os ataques ao Charlie Hebdo com o argumento que “a despeito da barbaridade injustificada dos atos terroristas e blá blá blá” o jornal contribuía para a construção de uma visão estereotipada de uma minoria cultural oprimida e que a ação de grupos como Al Qaeda e Isis podem ser explicados como reações “equivocadas” a ação imperialista das potências ocidentais em sua opressão contra o “povo muçulmano”; a esquerda fortalece a noção de que está em jogo uma luta cultural entre ocidente e oriente e cai na armadilha da chave hermenêutica que alimenta o delírio político da extrema direita europeia.

A imagem do muçulmano como membro de uma “minoria cultural oprimida” é o outro lado da moeda da imagem do muçulmano como membro de uma “minoria cultural ameaçadora”.

Para a esquerda se libertar da chave interpretativa que a direita construiu na Europa, precisa reformular seus próprios conceitos e submeter à crítica esse modelo que lê o fenômeno do terrorismo fundamentalista dentro da dicotomia consensual de: “choque de civilizações” ou “imperialismo ocidental”.

Relativizar a ação de grupos fascistas como a Al Qaeda e o Isis, que fuzilam anarquistas, socialistas e liberais na Síria com a mesma desenvoltura com que degolam jornalistas ou assassinam cartunistas é oferecer mais carvão para a caldeira do inimigo.

Oui, Je suis charlie et aussi Charb, Wolinski, Arhmed, Satrapi, Ginsberg, Rumi...Oui, Je suis charlie et aussi Charb, Wolinski, Arhmed, Satrapi, Ginsberg, Rumi…


Daí é preciso se propor uma desconstrução radical da ideia de que há qualquer combate cultural por trás desses atentados. É por isso, que a França, mais do que nunca, precisava de um Sartre hoje.

Sartre provavelmente teria dito aos franceses que a mais eficaz forma se oferecer uma chave hermenêutica alternativa ao mito do grande combate cultural entre oriente e ocidente é recolocando na pauta a questão da liberdade.

Não se trata de entender a ação dos terroristas como uma monstruosidade inumana de psicopatas assassinos. Esse tipo de leitura cria uma cortina de fumaça sobre o fenômeno do terror, sacralizando-o em uma loucura transcendente que o joga em uma esfera para lá de qualquer possibilidade de entendimento.

O que está em jogo é a liberdade radical do ato que se transfigura na escolha do sujeito diante de suas próprias circunstâncias. Temos um confronto entre duas “liberdades”: a liberdade da arte em seu extremismo militante que desmonta sem tréguas as mitologias culturais e a liberdade do ato extremo do terror que assassina o artista, vingando o mito contra a ofensa iconoclasta da arte.

Nesse sentido, não estamos diante de uma guerra do islã contra o ocidente nem de uma reação extrema de grupos oprimidos pelo imperialismo ocidental, mas de uma escolha radical acerca das possibilidades expressivas da arte, que não se circunscreve a culturas específicas ou civilizações determinadas, mas cada um de nós enquanto sujeitos que atuam na liberdade radical do ato.

Nessa nova dicotomia, a gente tem que fazer nossa escolha.

Eu fiz a minha.

Je suis Charlie, Wolinski, Charb, Ahmed, Marjane Satrapi, Ginsberg, Muhammad Rumi…