Quinze anos depois de ter pisado pela primeira vez em solo europeu, volto às terras frias do norte na companhia de Ana. Pela terceira vez nessa encarnação cruzo o Atlântico em direção à terra velha. A curiosidade é que, assim como na primeira vez, quinze anos atrás, essa estação tem o cheiro de guerra no velho mundo.

Em 1999, quando descemos no aeroporto de Frankfurt, vindo de São Paulo, havia no ar a ameaça de bombardeio da OTAN à Sérvia em função dos conflitos em Kossovo.

Hoje, o tema da vez é a Ucrânia.

É difícil não pensar na Europa e não se lembrar de uma guerra. Nos últimos 500 anos nossos irmãos do norte não passaram um século sequer sem se envolver em uma guerra generalizada. A língua, a cor da pele, a religião, o dinheiro, alguma velha mitologia de origem… muitos são os motivos que levam os povos das terras frias ladeira abaixo nas suas conflagrações. Por isso mesmo, sempre pensei no norte como um lugar em que a terra tem cheiro de sangue. Talvez seja mesmo esse sangue, de guerras periódicas; tão fundamental pra construção da Europa moderna quanto suas tradições que se perdem num emaranhando articulado de narrativas e personagens antigos: reis, cavaleiros, papas, artistas e filósofos. Uma fauna que parece compor um grande zoológico de ideologias e mitologias políticas costuradas em torno de um conceito vazio, nomeado por alguns com o rótulo de “civilização ocidental”.

Dessa vez, como em 2006, a porta de entrada para a Europa foi Lisboa, nossa velha capital colonial. Infelizmente, apesar das quatro horas de intervalo entre um vôo e outro, não seria viável sair do aeroporto e fazer comparações com a cidade que conhecemos no verão de 2006. Queria ter a oportunidade de sentir os efeitos da crise em Portugal já que quando estivemos por lá, durante a copa da Alemanha, ainda se vivia a euforia narcótica, patrocinada pela festa do capitalismo financeiro global. Agora, com a ressaca que aparece do dia posterior aos excessos coletivos, talvez Lisboa estivesse diferente, tomada por aquela dolorosa reflexão pós-orgástica que toma conta dos povos quando o delírio bipolar do capitalismo abandona a sua fase maníaca.

Ao menos o aeroporto me pareceu maior e incomensuravelmente mais agradável do que os aeroportos brasileiros, diga-se de passagem. Estivemos no aeroporto do Rio de Janeiro no final do ano passado (2013) e saímos com a sensação de que algumas rodoviárias de província são bem mais organizadas.

Pra mim, particularmente, o que mais se nota nesses aeroportos europeus é a qualidade higiênica dos vasos sanitários.

Não há indicie mais poderoso de civilidade do que um banheiro público em que se possa defecar decentemente. Acho que a situação dos banheiros nos aeroportos brasileiros é um sintoma psicanalítico de uma fase anal coletiva mal resolvida, que talvez contribua para um certo grau de “menoridade civilizatória”.

Se as fezes são a expressão simbólica mais intensa de nossa própria substância interior, e de nossa inexorável e radical intimidade (a prova disso é aquela olhadinha no papel higiênico que todo mundo dá após a conclusão dos trabalhos excetivos), o modo como se trata da bosta coletiva é um sintoma significativo para se entender uma cultura.

Há algo de iluminismo nos banheiros públicos da Europa. Há uma certa assepsia cidadã, representada pela vassourinha de lavar vaso, posta ao lado do sanitário, esperando para que o usuário do assento, após seu ato primal de evacuação biológica, limpe a própria sujeira; a fim de que suas particularidades intestinais não perturbem o próximo.

Esse distanciamento fecal, em certo sentido, é sintoma dessa utopia moderna de assepsia e higiene da razão. Uma utopia europeia, que equaciona a ordem das terras frias, a partir de um sistema de funcionamento do mundo onde cada um faz a sua parte para não perturbar o sossego do outro e, de certo modo, manter o outro a uma distância segura de si mesmo.

No Brasil, a promiscuidade tropical acaba nos deixando mais descuidados e desatentos em relação a nossa própria bosta. Em um ato narcisista de exposição de nossas próprias vísceras, nos contentamos (na melhor das hipóteses) em apenas dar uma “descarguinha básica” e torcer para que o sistema hidráulico dê conta de nossa intimidade intestinal. Caso contrário, paciência… que é que eu tenho a ver com isso?!? Alguém vai aparecer para limpar o banheiro, senão, problema do próximo!

Os banheiros dos aeroportos europeus parecem indicar à primeira vista, com seus signos de higienização, apenas o respeito à dignidade humana que as terras do norte insistem em afirmar como principio ideológico (afinal, o direito de defecar em paz e em condições ideais de higiene e assepsia também deveria ser uma expressão dos direitos fundamentais). Na verdade, esse signo é um sintoma mais interessante da própria utopia moderna de um mundo regulado pela racionalidade e pelo controle dos impulsos biológicos primais. Se você parar para pensar, esse mesmo sintoma aparece também na utopia kantiana da construção de uma “Federação de Estados Independentes” que permitiria a humanidade encontrar a definitiva paz perpétua em outro espaço que não o do “calmo e silencioso cemitério do gênero humano”.

Talvez a guerra civil na Ucrânia, que cada vez mais parece uma realidade, seja o indício de que a mesma racionalidade que limpa os banheiros, também cria as segregações entre povos e línguas. A mesma separação higiênica em um continente que praticamente cabe no Brasil (se retirarmos a Rússia, é claro) e que tem uma língua e um dialeto separando pessoas em tribos, a cada 200 quilômetros.

A mesma higiene dos banheiros públicos do norte, que permite o respeito pela dignidade fecal da humanidade, transformada na higiene financeira da troika ou na assepsia étnica neo fascista, produz sua própria barbárie particular. Talvez um sintoma, um escape, um deslize. Resíduo histérico travestido em guerras sazonais.

Confesso que não consegui deixar de especular se, caso essa utopia federalista naufrague (como alguns vaticinam em função dos próprios impasses da União Europeia); os povos do norte conseguirão manter seus banheiros públicos impecáveis ou retrocederão ao estado de barbárie sanitária dos aeroportos brasileiros.

Quem viver verá.