NATAL PRESS

Essa estação de Oscar na academia de cinema norte americana nos legou, pelo menos, duas boas lições sobre o discurso ideológico do modelo liberal.

A primeira cena aparece no filme de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street. Nela, Leonardo Di Caprio, interpretando um jovem corretor da bolsa de valores que chega para tentar seu primeiro emprego no paraíso das finanças, conversa com um corretor mais velho e experiente. Como em um diálogo de formação, o mestre passa as dicas ao discípulo para sobreviver e ter sucesso no mercado financeiro. Duas são as regras básicas: masturbação e cocaína.

Como um mestre de yoga às avessas, o guru de Di Caprio explica que a masturbação deve funcionar como um mecanismo para manter a energia biológica sempre “fluindo pra baixo”; e que a cocaína ajuda a fazer subir essa mesma energia para fazer com que a mente, ativa, possa acompanhar o grande fluxo de informações financeiras que gira, gira, gira em uma imensa nuvem de nada 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano.

Fugaz, etéreo, evanescente. O sentido fundamental do capitalismo com dominância financeira, entre a masturbação e a cocaína, apresenta sua justificação ideológica em um budismo empresarial que mescla a confiança na ilusão da realidade (a sociedade de produção não é real, o trabalho, a vida das pessoas, a propriedade, tudo ilusão) com a ideia de que o mercado financeiro com sua rede de Indra virtual é o único fenômeno que podemos ter acesso.

A cena é genial, valeria por todo o filme, mas Scorsese e Di Caprio conseguem se superar no seu diagnóstico do capitalismo contemporâneo, em todo o seu esplendor maníaco depressivo.

Sempre achei a cocaína uma droga profundamente careta. Ela, e todos os seus derivados e possibilidades, é a grande “droga do mal” justamente por seu apego simbiótico ao sistema de mercado que nos reduz à commodities humanas e nos controla de dentro pra fora. A Cocaína é a grande metáfora bioquímica do capitalismo. O delírio de um sistema que se pensa superpoderoso, que infla e cresce sem parar em uma alucinação narcótica de grandeza que arrasta o mundo para a ruína sazonal é profundamente cocainômano. Como na gangorra em que o adicto costuma a cair, oscilando euforia simulada do pó com a depressão avassaladora que a ressaca da droga produz, o sistema que construímos joga o mundo pra cima e pra baixo, em uma ondulação sem fim, na qual o resíduo é sempre descartado para a periferia do sistema como lixo, dejeto.

A outra grande lição de Holywood nessa temporada aparece no filme “Doze Anos Como Escravo”, baseado no livro homônimo de Solomon Northup, um negro livre do norte, sequestrado e vendido como escravo na metade do século XIX, que passa doze anos cativo em uma fazenda de algodão na Georgia.
Doze anos como escravo

Em uma das cenas mais fortes do filme, o senhor de escravos, branco, de olhos claros, com a Bíblia nas mãos, chicoteia no tronco uma menina negra até que suas costas se abram em crateras de sangue e carne. O protagonista do filme, o ator Chiwetel Ejiofor, que faz o papel de Northup, grita contra o senhor, dizendo que “Deus o irá punir por estar cometendo tamanha injustiça”.

“Que injustiça? Deus deu ao homem o direito de fazer o que quiser com sua propriedade.” – responde o senhor, enquanto estoura o chicote nas costas da menina.

Essa é uma cena fundamental para se entender a violência subjacente à ideologia liberal. O caráter sagrado da propriedade, a crença metafísica em uma natureza humana egoísta, que busca sempre o próprio bem e o próprio prazer a partir do gozo dos direitos e da liberdade de negociar livremente com os outros, é um dos pilares fundamentais do liberalismo.

Essa utopia moderna que produziu o holocausto da diáspora africana e o massacre dos povos tradicionais da América; se manifesta de maneira obscena no modo como o senhor-proprietário abusa de seus objetos (escravos). Uma relação que mantém conexões na maneira como a nuvem financeira trata os consumidores de crédito bancário no capitalismo com dominância financeira.

As duas lógicas, a do cocainômano que não se vincula afetivamente a nada, a não ser o próprio gozo narcótico, travestido de nuvem financeira e pó branco; e do senhor cristão que usa a teologia bíblica para justificar o direito de usar sexualmente, enforcar, espancar, marcar com ferro outros seres humanos tratados como propriedade, são forças intrínsecas que ainda hoje movem o sistema de mercado.

A estrutura argumentativa e o conjunto de valores ainda aparecem nos traços cotidianos de nossos discursos, na fala ideológica de nossos mecanismos de propaganda, nas entrelinhas das notícias de jornais. Talvez você, sendo um liberal sincero, possa mesmo manter a fé nos pressupostos metafísicos de seu próprio discurso depois de assistir essas cenas na tela do cinema. O que não pode deixar de perceber, com algum constrangimento, é que a arquitetura ideológica que movimenta as catástrofes financeiras e a monstruosidade da escravidão, continua entre nós, firme, esperando apenas o movimento da história para retornar, ainda, como tragédia.



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