Dizem os que estudam a vida dos antigos, que no circo romano, ou mesmo em velhos anfiteatros do mundo grego, existiam lugares especiais destinados aos ricos. Eram assentos com buracos no meio, uma espécie de vaso sanitário público no qual a elite de Atenas ou de Roma, poderia urinar e defecar livremente enquanto assistia mais uma corrida de cavalos, uma luta de gladiadores ou mesmo a encenação de uma tragédia de Sófocles.


Havia um sentido catártico nesses eventos. Uma dimensão profilática, fisiológica, que permitia aos mais abastados, limpar suas impurezas interiores enquanto assistiam aos espetáculos.

Esse hábito sanitário, que parece chocante nos dias de moralidade pequeno burguesa, está hoje, ao menos em um nível simbólico, sendo repetido nas redes sociais.

Confesso, amigo velho, que já havia detectado a densidade profilática de muitas das mensagens que chegam na minha time line. Como nos tempos antigos, o espetáculo das redes é usado em muitos casos como um mecanismo de purificação. Exalamos nossas ideias e nossos discursos como se descarregássemos um conteúdo reprimido, sufocado, estagnado nas profundezas de nossa mente pela moralidade comum. Algo de nossa substância interior, de nossa particularidade íntima, algo de nossa mais fundamental privacidade eclode, nos 140 carácteres do twitter, em momentos de comoção social ou de devaneio estético.

Na media em que o surto cidadão da classe média brasileira vai arrefecendo, e os protestos pelo país voltam a sua configuração original, o discurso profilático da twittaria renasce. Retornamos ao estado original, anterior ao dia 13 de Junho, quando milhares de manifestantes foram vandalizados pela PM de São Paulo no episódio que já vai entrar para a história como “O massacre da paulista”; enquanto Arnaldo Jabour criminalizava, para deleite da fascistada brazuca, o Movimento Passe Livre. Também retornamos para o dia 15 de Maio, quando os 300 de Natal, estavam sofrendo com a repressão policial embaixo do viaduto do quarto centenário, em meio ao clamor de muitos usuários da rede por mais violência e repressão.

Entre o abuso de uma polícia criada para reprimir e o ludismo primitivo de manifestantes que expõe sua raiva pelas ruas, a fascistada twitteira executa sua profilaxia virtual, retirando o verniz do discurso democrático e clamando por mais violência.

Sim, eles anseiam a violência. Quando dizem que “são a favor de protestos pacíficos, mas se houver baderna é pra policia, BAIXAR O PAU!” deixam claro, tal qual a elite greco-romana em seus assentos sanitários, que precisam da tragédia para expor aquilo que guardam cuidadosamente sobre o discurso politicamente correto da normalidade democrática.

Então, quando a violência estoura nas ruas executa-se nas redes o ato higiênico pedindo o retorno da ditadura militar, mandando que policiais intimidem e prendam manifestantes sem que esses tenham cometido nenhum crime, clamando pelo fim da OAB, justificando tortura, brutalidade e autoritarismo para defender a ordem.

Diante de fantasmagóricas narrativas sem imagens, em que sofás importados são arrastados pelas ruas dos bairros de elite das capitais em meio aos vidros de vitrines apedrejadas, de lixeiras incendiando diante de portas de banco depredadas, a classe média brasileira, com a nebulosidade ideológica e o parco letramento que lhe é peculiar, clama por mais violência.

Vou lhe confessar, amigo velho, não tenho medo do policial mascarado e sem identificação que dá choque elétrico em meninas de quinze anos; não tenho medo de manifestantes de rosto coberto que jogam pedras nas vidraças, meu medo mesmo é dessa energia sombria que nasce no discurso do “homem de bem”, do cidadão comum, que grita para que a democracia seja sacrificada no altar de uma ordem que, ao invés de garantir a segurança, promove mais e mais violência.

É esse senso comum que alimenta o que Hannah Arendt chamou tão bem de “a banalidade do mal”. De seu sofá, da cadeira de seu restaurante, do banco de seu automóvel, o homem de bem digita no seu I-Phone a senha que libera os monstros de nosso tempo.

Nessa epoca de protestos globais, construímos poderosas fantasias. Temos as fantasias de emancipação e liberdade, que alimentam as massas na luta democrática; mas também temos poderosas fantasias obtusas, de violência e autoritarismo, que apontam para a possibilidade sempre presente de um terror que nasce quando a covardia social petrifica a ansiedade de mudança do povo.

Antônio Gramsci, enquanto aguardava o momento de sua própria morte em uma prisão de Mussolini, escreveu uma frase poderosa que dizia mais ou menos assim: “um velho mundo está morrendo, um novo luta pra nascer: agora é o tempo dos monstros”.

E aí? Quais são os seus monstros?

http://www.pablocapistrano.com.br/