NATAL PRESS

 

Em Hamburgo eles são classificados como membros da esquerda radical. Em Caracas, agentes do imperialismo norte americano. No Rio de Janeiro, vândalos que queimam lixeiras e depredam “patrimônio público”. Em Charlottesville, ativistas que socam a cara de neonazistas e supremacistas bancos.  Black blocks, anti-fa, anarquistas.

Não importa se na ação direta contra os ícones do capitalismo global, ou na estratégia defesa usada para segurar o avanço da polícia, com seu gás, seus cacetes e suas balas (nem sempre de borracha); são eles que mantem firme a bandeira negra (ou rubro negra no caso dos anti-fa) nas manifestações globais dessa segunda metade do século XXI.

Mas, apesar de terem surgido na telinha do seu telejornal apenas nesses últimos anos, a tradição à qual se vinculam tem origens muito arcaicas, que remontam as comunas epicuristas do século II a. C. e as primeiras comunidades cristãs com seu igualitarismo radical. Apesar dessa longa tradição, foi apenas durante a revolução francesa que o termo “anarquia” e “anarquista” ganhou a conotação moderna. Ali, a alcunha era usada com um sentido de insulto por membros de diversos partidos para que pudessem difamar seus oponentes, geralmente aqueles que andavam mais à esquerda do seu espectro político.

Nesta tarefa difamatória uniam-se tanto Girondinos conservadores como Brissot, quanto jacobinos radicais como Robespierre. Assim como nesses dias de ódio digital e manipulação mediática, a construção da imagem desses “anarquistas” como facínoras assassinos ou terroristas sem lei, emergia tanto da direita conservadora, quanto da esquerda “oficial”.

A conotação pejorativa do termo foi, inclusive, usada pelos seguidores de Marx na década de 1870 para fazer referência aos defensores das teses de Proudhon, durante a primeira Internacional Socialista. Só a partir dessa fissura fundamental da esquerda na segunda metade do século XIX é que o termo “anarquista” passou a ser usado como um elemento de autoidentificação.

A despeito de sua aparente contemporaneidade, com as máscaras que fazem referência ao quadrinho V de Vingança de Allan Moore, e a cultura hacker dos “anônimos” trazendo para o mundo digital os auspícios de revolução, as bases do movimento se desenharam bem antes. Entre 1648 e 1649, durante os anos conturbados da revolução inglesa, o movimento dos diggers já anunciava um comunismo libertário, antecipando o espírito iluminista do século seguinte; e não apenas eles, os anabatistas da comuna de Münster (no século XVI), com sua escatologia bíblica que subvertia a autoridade eclesiástica pregando uma quinta monarquia e a chegada iminente de Cristo para promover uma destruição de todas as estruturas sociais e fazer emergir um mundo novo; ou mesmo os quakers reformistas que apontavam para a preponderância de uma “voz interior” para além de qualquer hierarquia ou doutrina, que levaria todos em direção ao “deus que habita em cada homem”.

Todas essas expressões proto anarquistas carregavam em si, em maior ou menor grau, um forte sentido moral, um desprezo pela riqueza e por qualquer forma de autoridade. Nesse sentido, os anarquistas contornam o ressentimento de classe que parecia ser um dos motores do comunismo marxista no período posterior a ruptura da primeira Internacional. Não se trata simplesmente de odiar, mas sim desprezar a riqueza. O ressentimento diante do gozo obsceno dos ricos em uma sociedade intensamente desigual como a do final do século XIX e a do início do século XXI, leva o movimento operário a atuar numa linha limítrofe, muitas vezes cruzada com facilidade, entre o impulso de negar o modo de vida burguês e o desejo de reproduzir esse mesmo modelo odiado. A base moral do anarquismo, por sua vez, empurrava o povo da bandeira negra no sentido de um desprezo atávico e romântico contra a vida burguesa. Esse desprezo eclode em toda parte da tradição anarquista, quer no individualismo radical de Max Stirner, no mutualismo teórico de Proudhon e seu conceito de “destruição criativa”, no anarco-sindicalismo ou mesmo no pacifismo cristão de Leon Tolstoi (que antecipou a Satyagraha de Gandhi, com o seu livro de 1894 “O Reino dos Céus Está em Vós”).

Talvez por isso seja fácil entender o porquê de ouvimos leituras depreciativas acerca dos anarquistas, tanto por parte da esquerda radical, quanto da direita conservadora protofascista e do extremo centro liberal.

Quando converso com meus alunos do ensino médio sobre as revoluções dos últimos trezentos anos e o cardápio das doutrinas políticas que a modernidade nos legou, geralmente eles perguntam porque não houve uma grande revolução anarquista universal. A pluralidade e fragmentação das experiências comunitárias anarquistas, dos primeiros jardins epicuristas, até os squats contemporâneos, mostra que não é possível avaliar o nível de sucesso ou fracasso que as ideias libertárias tiveram na construção do nosso mundo contemporâneo usando o mesmo critério que costumamos usar para avaliar seus irmãos comunistas e socialistas; ou seus primos liberais.

Mesmo nas dimensões mais trágicas dessas experiências libertárias, quer seja na Alemanha das lutas camponesas dos séculos XVI, na comuna de Paris ou em Canudos, é possível perceber uma marcante diferença em relação ao fracasso da experiência soviética ou de outros países que implantaram regimes comunistas no século XX. Slavoj Zizek costuma a repetir em diversos de seus livros que a esquerda se fortalece na tragédia e algumas vezes a derrota das forças mais radicais, inclusive com o sacrifício físico dos membros de suas organizações e grupos políticos, reverbera de modo muito mais intenso no “tecer silencioso do espírito” (como dizia Hegel) do que a vitória de seus carrascos. Algumas vezes, o fracasso trágico que advém da brutal repressão que recai sobre as comunidades libertarias, pode mesmo bloquear o avanço de forças mais conservadoras quando essas mostram seus caninos fascistas.

Em alguns casos, na história dos confrontos políticos perder é ganhar e, especialmente no tempo em que a política era bem mais do que um simples modo de “ganhar a vida” ou encher o rabo de dinheiro, o sofrimento dos que sucumbem pelo caminho, derrotados, como na guerra civil de 1936 na Espanha, ou nos golpes militares latino americanos nos anos 60 e 70, se torna um poderoso elemento de desconstrução moral dos vencedores.

Foi assim no tempo do terror jacobino na França, quando Robespierre reprimiu de modo violento os denominados “anarquistas”.  Os enragés (enraivecidos), como eram chamados os grupos que não se vinculavam a nenhum partido e que não tinham nem organização definida nem estrutura hierarquizada, foram tão duramente perseguidos pelos membros do diretório quanto os aristocratas conservadores.

Jacques Roux, padre da zona rural de Paris, que guiou o rei Luís XVI até o cadafalso e que estimulou camponeses a pilhar e queimar castelos quando os aristocratas franceses tentavam fazer valer os seus direitos senhoriais sobre a população campesina revoltada, se insurgiu contra o diretório quando os jacobinos começaram a guilhotinar pessoas em razão do simples pertencimento de classe ou de uma mera paranoia política. Em 1793, Roux e seu companheiro Jenn Varlet, foram presos. Sob a acusação de promover o “anarquismo” no interior da República, Roux foi condenado a morte, mas burlou a condenação e preferiu se suicidar na prisão.

As coisas são assim mesmo, amigo velho. Nos tempos em que a política se torna questão de vida ou morte, o modo como se vive e o modo como se morre tem mais força moral do que uma vitória eleitoral em um segundo turno de uma eleição majoritária. Por isso, antes de acabar com a própria vida, Jacques Roux escreveu: “Não me queixo do tribunal. Ele agiu de acordo com a lei. Mas eu agi de acordo com a minha liberdade. Morrer colocando a liberdade acima da lei, é morrer como um anarquista”.



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