NATAL PRESS

Fiquei meio sem acreditar quando ouvi pela TV que o governo iria ativar a Polícia Federal para monitorar as redes sociais atrás de elementos que estariam “instigando” os protestos que ameaçam começar pelo Brasil a fora.

Não que eu tivesse alguma ilusão pelo fato do governo ser petista. Cresci no meio da política institucional e aprendi logo cedo que governo é governo e que todo autoritarismo é ambidestro. O que me espanta é a evidente falta de compreensão acerca do sentido desses protestos em tempo de rede, especialmente, no Brasil. O governo raciocina analogicamente enquanto os estudantes pensam em formato digital. O retorno dos protestos de rua, a partir de cidades como Natal (que no ano passado foi uma das primeiras a levantar as fileiras da chamada #RevoltadoBusão ) não pode ser compreendido sem se enxergar o pano de fundo do fenômeno global de movimentos como os da Primavera Árabe, Indignados na Espanha, Ocuppy Wall Street ou mesmo o da praça Taskim em Istambul. Também não podemos olhar para esses protestos sem fazer uma leitura mais profunda, do momento político brasileiro.

Se você é um liberal legítimo, e não um fascista enrustido, deve saber que não há como sustentar uma ordem democrática sem um apelo a argumentação de Kant de que a coação é o elemento que garante a liberdade. Mas o teste do grau de fascismo potencial sobre o verniz da democracia liberal aparece quando o argumento da coação é desprovido de um segundo aspecto, fundamental na elegante arquitetura conceitual kantiana. A ideia de que ninguém pode ser moralmente obrigado a seguir uma lei sem que tenha a possibilidade de lhe dar o seu consentimento é a espinha dorsal da utopia liberal democrática.

Sem que haja a sensação (mesmo que meramente ideológica) de que eu pude participar no processo de elaboração das leis, qualquer imposição coercitiva de uma norma aparece para mim como uma imposição autoritária.

Sei que às vezes filosofia parece difícil, e que encontrar o ponto central de um argumento filosófico é uma atividade um pouco mais trabalhosa do que achar uma lente de contato perdida em um domingo de sol, na beira da praia. Mas não é preciso um esforço hercúleo de se entender o motivo pelo qual os protestos em rede ameaçam explodir em todo Brasil, bem no meio da copa das confederações. Tudo isso para o pânico dos governos de todos os partidos, para o terror da Fifa e seus funcionários, para a crescente paranoia da classe média brasileira.

Como acreditar no argumento kantiano em um Brasil no qual as instituições da democracia representativa caíram em descrença? Para esses garotos que queimam lixeiras, picham prédios e quebram vidros de ônibus; ou que simplesmente protestam pacificamente ocupando legitimamente o espaço público da cidade que foi tomado pela indústria automobilística, a democracia brasileira parece o que ela teima em parecer: uma piada.

Se a mobilidade urbana que a o Governo da Fifa prometeu é uma falácia; Se a promessa constitucional de saúde, saneamento e segurança foi trocado por um I-phone e uma televisão de LCD; Se o governo federal destinou em 2011 45,05% (R$ 708 Bi) dos impostos arrecadados para bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, empresas privadas e apenas 2,85% para a educação; Se a corrupção e a mediocridade retórica se generaliza pelos partidos políticos e na iniciativa privada a exploração do meu trabalho travestida de flexibilização, terceirização, produtividade só faz aumentar; Se a pirotecnia eleitoral me ofende com todas as promessas de bem estar social não cumpridas; como é possível que eu pense que a lei que me coage é produto da minha liberdade?

É aí que a violência da ordem aparece como mais brutal do que a violência da desordem, porque, para manter a ordem em um sistema onde a coação não se justifica na liberdade é preciso bater, prender e matar.

É nessa hora que o grande Outro, o Estado, no seu papel de garantir a ordem e a propriedade, aparece como instância de força que impõe seu controle mediante a fidelidade a uma ordem jurídica que não se consegue mais legitimar politicamente.

É bom sempre lembrar, amigo velho, que o fascista é, em última instância, a sombra do liberal, do mesmo modo que o stalinista é a sombra do socialista romântico. Quando a democracia se aprofunda e atinge as bases econômicas que mantém o sistema funcionando vale, para o liberal de direta, a lógica que diz: “entre a democracia e a economia, salve a economia”. Nessa hora, o modelo de liberdades políticas e civis, um dos mais importantes legados da modernidade iluminista caí por terra, e o autoritarismo latente no discurso liberal desempacota.

Já vimos isso acontecer outras vezes aqui no Brasil, amigo velho. A geração do meu filho, Uriel (hoje com 17 anos), não sabe o que acontece nesse país quando a violência da ordem sufocou a desordem da liberdade. Eu, que nasci em 1974, sei. É por isso que é preciso lembrar sempre aonde está sendo chocado, na fragilizada democracia brasileira, o ovo da serpente, pra que ela não retorne, como farsa, ou como tragédia.



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