Cansei de repetir para meus alunos, durante os sete anos que lecionei no curso de Direito da FARN (hoje UNI-RN) o velho brocado romano que dizia: “nem tudo que é legal, é honesto”.

E uma das honestidades que muitas vezes não combina com a ordem legal é a verdade. Isso porque, como muita gente já percebeu, todo poder é uma performance. O poderoso não tem o poder. Como um ator ele interpreta o poder de uma ordem da qual ele é o representante. Por isso que essa semana, dois acontecimentos bastante sintomáticos nos ajudam a pensar sobre a realidade da ordem democrática brasileira.

O primeiro foi a fala do presidente do STF (Joaquim Barbosa) para alunos do Instituto Superior de Educação em Brasília. O ministro disse que no Brasil os partidos políticos eram “de mentirinha”, que não tinham consistência programática e que nosso legislativo era historicamente submetido ao poder executivo. Ora, o que o ministro disse foi uma obviedade que qualquer calouro do curso de ciências sociais lá do setor II da UFRN aprende logo no primeiro semestre.

Não é preciso nenhuma exegese filosófica mais sofisticada ou pesquisa profunda sobre as catacumbas políticas do país para saber que o ministro não mentiu; apenas constatou uma verdade que paira na superfície da consciência nacional. Mas não foi a fala do ministro para os estudantes que realmente traz algo de significativo para entender a natureza ideológica da nossa ordem democrática. O mais interessante é a justificativa feita em nota oficial do presidente do STF. A nota explica que o ministro falou em um contexto acadêmico, marcado pela liberdade de reflexão teórica que o permitiria tecer comentários sobre a ordem política nacional. Ali não falava o presidente do STF, mas o professor Joaquim Barbosa, o jurista Joaquim Barbosa, o bacharel em ciências jurídicas Joaquim Barbosa, cidadão brasileiro.

A nota foi muito mais revolucionária do que a fala do ministro porque aponta para o fato de que a verdade sobre a política brasileira se diz em um contexto acadêmico e a mentira ideológica da ordem democrática se mantem no discurso oficial no meio das falas decoradas para ornar as liturgias dos cargos da nossa República.

A ironia da nota é que ela mostra aquilo que procura esconder justificando que o ministro, presidente do STF, estava em uma zona de exclusão ideológica que o permitira dizer a verdade para seus pares. Tal qual um Trasímaco que interrompe o diálogo de Sócrates com seus amigos, no livro I da República, Joaquim Barbosa passou o bizú aos alunos do curso de direito. Ele quebrou o protocolo e a performance do poder para dizer aquilo que todos sabem mas que não podem saber que sabem.

Outro fato ocorreu aqui em Natal, na nossa província ensolarada, balneário tropical desse atlântico de copa do mundo. Enquanto Falcão da banda “O Rapa”, (patrocinado pela FIAT) chama os cidadãos brasileiros a ocupar as ruas para torcer pela seleção na copa das confederações, os estudantes natalenses fecham mais uma vez a BR-101 para protestar contra o aumento das passagens de ônibus.

Qual a reação do Estado, em suas instâncias oficiais? Ato 01: Jogou a polícia sobre os estudantes baixando a porrada na rapaziada acuada embaixo do viaduto do quarto centenário. Ato 02: infiltrou essa mesma polícia em uma plenária na UFRN, realizada para discutir o movimento, marcando sua presença na tal “zona de exclusão acadêmica” que, em tese, deveria ser um espaço livre para que as verdades escondidas pela ideologia hegemônica (o que é uma redundância) pudessem ser ditas. Ato 03: através do braço judiciário emitiu uma ordem de prisão a qualquer manifestante que interrompesse o tráfego na BR-101.

Como na nota do STF, esse comando judicial é muito interessante, porque depõe contra a ordem que busca justificar. Como um ato falho de um paciente em uma sessão de psicanálise, o poder judiciário ajudou a população a entender a natureza fajuta da ordem democrática que diz proteger. O argumento é mais ou menos esse: “todos tem o direito de demonstrar seu descontentamento e protestar, contanto que não perturbem a ordem nem prejudiquem os outros”.

O que essa frase diz na verdade é: “todos tem direito de demonstrar descontentamento e protestar, contanto que seu protesto seja inofensivo e não surta efeito”. Como um pai autocrático, a ordem instituída diz ao povo: “vocês são livres para fazer o que quiserem; contanto que não façam aquilo que eu desaprovo”.

Com a desculpa de proteger o direito dos outros contra uma minoria, o mesmo poder judiciário que deixa quadrilhas de corruptos soltas por aí (uma minoria que perturba o direito dos outros) ameaça com a espada da justiça setores da população que, como o cidadão Joaquim Barbosa; não acreditam mais nas instâncias partidárias tradicionais e nos caminhos institucionais.

Amigo velho, por mais bem construído que seja; o discurso que esconde o autoritarismo de uma sociedade controlada pelo Estado e pelo mercado tem suas brechas. É preciso ficar esperto quando essas brechas se tornam evidentes, porque como dizia o velho e totalitário camarada Mao “há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente”.